(Cena do filme "Hamlet", de 1948)
"Nostalgia é negação – negação do doloroso presente –,
uma noção equivocada de que uma época,
uma era dourada, é melhor do que aquela em que se vive;
uma falha na imaginação romântica das pessoas que
acham difícil ocupar-se do presente." Meia Noite em Paris
Raiz ou Nutella? Eis a questão. Pelo menos até surgir um novo meme¹. Fato é que a brincadeira comparativa, utilizando "Raiz" e "Nutella", tomaram as redes sociais e todos os dias novas comparações são feitas tendo alvo ideias, pessoas, esportes, profissões, ideologias, religiões, objetos, etc. As comparações são feitas listando aspectos positivos para as coisas que são "de raiz", isto é, coisas do passado e, por outro lado, as coisas percebidas com traços negativos são listadas como "Nutella", isto é, coisas hodiernas.
O sentimento de que a atualidade tem valor inferior ao passado é comum não apenas na vida das pessoas mas também na sétima arte, o cinema. Woody Allen brindou-nos com o belíssimo filme Meia Noite em Paris², que, em suma, narra a história de Gil Pender, um roteirista, aspirante a escritor e... nostálgico. Gil sonhava em viver em Paris. Mas não na "Paris moderna"; ele desejava viver na "Cidade Luz" de 1920, na fase parisiense da Belle Époque. Gil não queria viver na "Paris Nutella"; ele queria viver na "Paris de raiz".
Tendo em vistas o meme "raiz ou Nutella", será que podemos viver nostalgicamente reduzindo o valor do presente em relação ao passado? Penso que não. Muitas coisas que admiramos no passado pertencem a ele e, certamente, não cabem no mundo presente. Até mesmo as coisas que não admiramos são fatalmente pertencentes ao passado. Não afirmo com isso que devemos esquecer do passado. De forma alguma devemos esquecer o passado. Burke³ nos advertiu sobre o problema de esquecer o passado ao afirmar que "aqueles que não conhecem a história estão condenados repeti-la". O passado nos ensina como viver no presente, construindo o futuro.
Muitos reclamantes do "presente Nutella" fazem apologia a práticas do passado, afirmando que o presente perdeu a graça. Os humoristas Renato Aragão e Jô Soares são críticos do politicamente correto que vivemos no presente. Aragão afirmou que "naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam"⁴. Soares por sua vez entende que o "humor não tem limite"⁵. Mas o que dizer para uma criança negra que as piadas que fazem com ela, tratando-a com alcunhas como "macaco" ou "urubu", são "apenas piadas"? O que dizer para o jovem que se percebe na condição existencial como gay, que todas as piadas que houve no estádio de futebol em alusão ao adversário ser "bicha", é apenas humor e uma "chacota saudável"? Acaso o racismo e a homofobia não nos mostraram o quão danoso esta postura é?
No passado, tempo "de raiz", negros eram sequestrados de suas tribos no continente africano e eram levados para serem expostos em zoológicos humanos na Europa e América do Norte, sob pretexto de que o "o negro africano seria o elo biológico entre o homem branco ocidental e o macaco"⁶. A eugenia⁷, termo criado em 1883 por Francis Galton, compreendido como "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente"⁸. Muitos eugenistas propagaram estudos defendendo a necessidade de "ajudar" a natureza no processo evolutivo da humanidade, através da "obtenção de uma descendência saudável (profilaxia), a consecução de matrimônios eugênicos (realização) e a paternidade e maternidade consciente (perfeição)"⁹. Muitos genocídios foram promovidos no mundo por países que seguiram políticas externas eugenistas.
No campo religioso também há aspectos "de raiz" que não devemos trazer para nossos dias. A mesma cristandade, que se entende como representante de Jesus Cristo de Nazaré, endossou cruzadas, inquisições e perseguições diversas durante centenas de anos. No calor da luta dos reformadores do século XVI por uma igreja centrada nas Escrituras, Lutero e Calvino foram coniventes com massacres e assassinatos de hereges. Muitos missionários protestantes foram enviados para países africanos, sul-americanos e asiáticos, onde Estados europeus tinham interesse econômico, com intuito de explorar e preparar culturalmente aqueles países para a dominação estrangeira neocolonialista. Missionários "de raiz", diriam os nostálgicos.
Em suma, podemos dizer que o passado deve ser analisado e não repetido. O passado não pode ser revisitado ou repetido. Como bem disse Belchior, "o passado é uma roupa que não nos serve mais". Toda e qualquer nostalgia em relação ao passado desejado, precisa ser tratado com muito cuidado. O presente, tempo "Nutella", é um tempo onde certas ideias e concepções de mundo não mais aceitam comportamentos que aconteceram no passado. Viver em saudosismo desacerbado nos mantém presos no passado junto com as coisas que lá pertencem. Faz com que não vivamos o presente como agentes de transformação do mundo que nos cerca. Torna-nos, ainda, alienados dos problemas que precisam de reflexão e ação no presente.
Em Meia Noite em Paris, Gil Pender por fim pondera que “o presente é assim… um pouco insatisfatório, porque a vida é um pouco insatisfatória”. Ele percebe que as pessoas estarão sempre insatisfeitas com o presente, mesmo aquelas com quem ele dialoga na sua "Paris de Nutella". Por mais difícil que seja ocupar-se com as questões do presente, precisamos ter em mente que o passado é intangível. Fomos inseridos no presente. E é este tempo que precisa da atuação de cada um de nós.
1 - https://pt.wikipedia.org/wiki/Meme_(Internet). Acesso em: 22 de fev. 2017.
2 - http://www.imdb.com/title/tt1605783. Acesso em: 22 de fev. 2017.
3 - https://educacao.uol.com.br/biografias/edmund-burke.htm. Acesso em: 23 de fev. 2017.
4 - http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/renato-aragao-diz-que-classes-dos-feios-negros-homossexuais-nao-se-ofendiam-com-piadas-14977817. Acesso em: 23 de fev. 2017.
5 - http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2011/10/jo-soares-chega-de-controle-politicamente-correto.html. Acesso em: 23 de fev. 2017.
6 - http://www.museudeimagens.com.br/zoologicos-humanos. Acesso em: 23 de fev. 2017.
7 - Eugéneia (grego): eu = bom, melhor / genia = gerar, geração.
8 - https://www.ufrgs.br/bioetica/eugenia.htm. Acesso em: 23 de fev. 2017.
9 - ASÚA, Jiménes de. "Libertad para amar y derecho a morir". Buenos Aires: Losada, 1942, p. 25-45.
Nenhum comentário:
Postar um comentário