Frases

21 de nov. de 2011

O caixão



por Maurílio Ribeiro da Silva 
Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração” Eclesiastes 7:2.
Olhos vermelhos observavam em silêncio solene o corpo opulento em um terno impecável, recoberto de flores, envolto em silenciosa ausência. O odor das flores entorpecia os sentidos e embrulhava o estômago das donzelas, enquanto carpideiras voluntárias derramavam-se em prantos. Crianças em pura inocência corriam no pátio, alheias ao sofrimento e absortas em seu mundo particular.

O pregador começou o sermão evocando lembranças do finado. O trabalho, a família, a igreja e outras realizações de sucesso em seus sessenta anos de vida. Ele convidou os presentes a refletirem sobre suas próprias vidas e escolhas. Após uma breve oração, chamou uma irmã de voz aguda que cantou “mais perto quero estar”. Parentes mais velhos iniciaram as preparações do cortejo. Mãos calejadas disputaram as poucas alças do caixão. Passos indecisos e vagarosos se dirigiram ao rumo final de uma vida.

Soluços se fizeram ouvir enquanto o caixão descia vagarosamente na cova. A esposa, filhos e netos se abraçaram solidariamente numa última despedida. O cortejo dispersou após abraços calorosos e promessas de apoio que nunca se cumpriram.

O quadro de extrema comoção, despedidas e dor foi pintado pelas mãos talentosas do bom Deus, quando desferiu a sentença a um assustado casal, oculto em meio a flores e animais selvagens.

O que poucos perceberam é que o falecido também pintou um quadro de seu velório. Seu quadro possuía detalhes imperceptíveis num primeiro olhar: uma mulher de meia idade, elegante, de olhos profundamente azuis, até então desconhecida, chorava em silêncio. Ela viveu a vida oculta sob a sombra lasciva do falecido, enlutada por anos de mentiras. Seu lamento profundamente revelador a olhos mais atentos, não acompanhou o caixão em seu cortejo.

No fundo do salão, um rapaz também de olhos azuis expressava um misto de dor e revolta, observando os filhos do finado acariciando-lhe as mãos geladas. Ele não poderia acariciar-lhe em público, como não pôde fazer por toda a infância.

Uma jovem em visível desespero esfregava as mãos na barriga volumosa, ansiosamente, como se acariciasse e confortasse a vida que se formava.

Um dos filhos saiu do cemitério disposto a retornar, dessa vez não como coadjuvante. Ele trazia impresso na alma as marcas da violência do pai. Ele trilhou todos os caminhos obscuros que pudessem afastá-los, mas agora caminhava para um encontro final. Seu desespero aumentou quando ele sentiu o mesmo olhar incriminador do pai nos olhos de um jovem no fundo do salão.

No sossego do lar, a viúva jogou as roupas do luto na lixeira, soltou os cabelos, abriu as janelas, fechou os olhos e sorriu beijada pelo vento fresco da noite. Algemas se quebraram, correntes se romperam e um novo dia raiou. Deitada no sofá, ela não pode deixar de rir quando viu o quadro que o marido havia colocado na parede. Uma foto de toda a família na praia e acima a inscrição: “Melhor é o fim das coisas do que o princípio delas” Eclesiastes 7:8.

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